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terça-feira, 9 de julho de 2013

A nudez do poeta

Admmauro Gommes*



O poema não é máscara que esconda a face de ninguém, mesmo que se procure ficar por trás das palavras, há de ser revelado nas entrelinhas, um pouco de quem verseja. A obra A nudez de escrever, de Roberto de Queiroz, provoca este entendimento. O autor sugere que o texto o denuncia, mostrando como se é internamente. Mas quando isso acontece, faz-se, como é de se esperar, pela força das metáforas, o que não diminui a veracidade, pois no que se vê percebe-se a existência de certas verdades, ou meias-verdades (que muda tudo).

Mesmo assim, ele se expõe diante do espelho das letras e surge quase nu de seu sentimento, transparente, mas não todo exposto, como defendem os versos do livro citado (p. 39): “Escrever é se despir/ (si próprio e o sentimento)/ daquilo que há no âmago (...) que se expõem ao grafar.” Tudo vai muito bem, mas quando ele introduz a palavra “âmago,” carregada de ambiguidade, veste-se de novo em seu manto opaco, pois “âmago” oculta, indecifra qualquer sentimento, não permitindo que se descubra a límpida realidade. Como quem quer e não quer, finge querer revelar-se, mas, é “fingimento deveras.”

Ainda que se deixe ocultar entre versos meio obscuros (p. 46): “circunspeto à candura dos lorpas,/ atreve-se a vir à tona o ubíquo,” o poeta revela sua posição, dentro de uma crítica visão de mundo, bem como o domínio que exerce sobre a linguagem figurada, mas reveladora de identidades. É claro que o leitor atento sabe que isso é um jogo de esconde-esconde e ver um poeta nu, nos termos em que estamos tratando, é algo que beira a impossibilidade. É que o poema, na condição de reflexo do espelho interno do escritor, traduz imagens distorcidas, modificadas, embora verdadeiras na sua essência, no âmago, por assim dizer. Sem controvérsias, todos manipulam a imagem que publicam, nunca negando a verdadeira face, mas investindo no disfarce da própria realidade vivida ou desejada.

Com isso, pode-se afirmar que o poeta, que é um inventor/ator por natureza, não se permite aparecer de cara limpa em nenhum de seus versos, principalmente nas obras-primas, onde a invenção é regra. Porquanto, há um jogo de ideias e sentidos figurados para guardar o que só ele sabe e a ninguém diz. Por assim dizer, a mimese, que é a imitação por palavras, na literatura, não se configura em copiar a realidade dos fatos, mas moldá-la ao cunho artístico, exigindo que o escritor se vista sempre de uma roupa pelo menos linguística, invisível aos olhos comuns e sabe que não se pode despir completamente, porque possui alguma caixinha de segredo que não se abre. Há sempre um tapa-olho nas partes mais íntimas da poesia.

Para aumentar o disfarce, o autor dialoga com outros poetas, quase que inconscientemente, mas descobre o caminho e provoca a intertextualidade, bem ao gosto dos modernistas, como se atesta em “Uma parte de mim é permanente/ outra parte se sabe de repente” de Ferreira Gullar e que Roberto de Queiroz (p. 63) atualiza como “Um pedaço de mim é permanente/ outro pedaço surge de repente”. De quem trata “essa parte?” De Gullar ou de Queiroz? O certo é que existe um elemento chamado eu-lírico que anula a verdade de ambos e se pronuncia como uma voz dentro do poema que não pertence mais a nudez dos autores, mas a dos leitores quando percebem que a verdade do escritor é também a sua. E quem aparece nu, nessa história: o autor ou o leitor?

Na verdade, só o poeta sabe onde “os poemas estão prontos sem estar” (p. 61) e isso Roberto de Queiroz descobriu há muito tempo, desde seu primeiro livro publicado. Agora tenta desnudar-se, mas ainda com muito recato, porque não se mostra por inteiro, mas o que se permite revelar aponta para a grandeza de uma poesia que transita com facilidade entre o verso branco e o tradicional.

Vamos ver se da próxima vez ele tira a roupa (sentimento) por completo e se revela nos versos como em carta-aberta aos leitores. Du-vi-de-ó-dó!

(Texto publicado no Diario de Pernambuco, 11/07/2013, Opinião, p. B9 e na Folha de Pernambuco, 11/07/2013, Cidadania, p. 4)

* Admmauro Gommes é poeta e professor de Teoria Literária da FAMASUL (Palmares/PE)

Um comentário:

  1. Sim, talvez tímido, talvez comedido, talvez modesto, talvez insano & transgressor o poeta se sabe agente do movimento que instiga nosso pensar, e nossas emoções... lembro da expressão de um grande amigo meu ao ouvir pela primeira vez a récita gravada pelo autor (grande poeta Ferreira Gullar) do seu Poema Sujo... lembro da lágrima renitente a lhe pender dos olhos de "grandalhão abrutalhado", tocado, vencido, comovido pela mágica atemporal do poema sendo dito, revivido, sendo "eviscerado" pelo autor que até então ele não havia descoberto. Tens razão caro professor: os poetas fingem que se desnudam, ou se desnudam fingindo que se escondem. Um abraço. Alexandre Florez.

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